sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Profeta da Chama de Olíbano


Mash'al foi ofuscado por um súbito raio de sol matinal, acordando em um sobressalto. O canto de algum pássaro tropical podia ser ouvido a distância, e um leve perfume de cardamomo pairava no ar. Abrindo os olhos e sentindo uma leve tontura, o garoto percebeu que estava em um estranho aposento circular de madeira. Ele não fazia idéia de como havia ido parar ali. Se sentando na grande rede de dormir onde estava deitado, ele esquadrinhou o local, resmungando ao perceber que não havia portas, apenas janelas retangulares com uma espécie de poleiro onde deveria estar o parapeito. Se perguntando se aquilo não era apenas algum sonho bizarro, Mash'al se espreguiçou e ficou balançando, sentindo uma leve brisa que soprava sobre as árvores lá fora. O teto do lugar era feito de galhos entrelaçados, que deixavam a luz passar formando um mosaico no chão. Vários objetos curiosos estavam recostados pelas paredes: cestos de palha cilíndricos, lanças de caça decoradas, contas de sementes e outra meia dúzia de redes, todas vazias.


Ainda sonolento, o garoto voltou a se deitar e pensamentos dispersos vieram a sua cabeça, primeiro tentando entender aquela situação surreal para então se tornarem longos devaneios em seu estado semi-entorpecido. A primeira coisa de que lembrou é que seu irmão havia morrido semanas atrás, assassinado na fronteira por contrabandistas de ópio de Ashrani. Desde então ele, que até então havia traçado seu próprio caminho, passara a ser o herdeiro legítimo do trono de Al-Dasht. Mash'al nunca quisera para si a vida palaciana, dedicando sua vida aos ofícios da Guilda de Engenheiros de Mavi, a qual pretendia usar para um dia deixar sua árida e isolada terra. Mas o destino parecia sempre já ter feito as escolhas por ele. A senhora do palácio, com aquele terrível olhar cor de âmbar que o fazia estremecer por dentro, havia dito que chegara a hora dele assumir os sinais que seu sangue marcado pela chama dos Ifrits possuía, no lugar de se envolver em seus próprios planos mesquinhos. Ele sentia os poderes inerentes a linhagem real da Tribo de Aswad de uma maneira intensa e tentadora, e não negava que os apreciava, mas o peso da responsabilidade que vinha com eles se mostrava grande demais agora.

Com um suspiro de frustração, Mash'al cruzou os braços e lembrou que o problema não terminava ali, enquanto fitava com um misto de raiva e frustração o anel de noivado em sua mão. Amirah, filha do sultão de Jezirat, havia feito o laço com ele em um casamento diplomático para selar a união das duas tribos que ainda governavam Al-Dasht. Ela, que irritava Mash'al com sua frieza e seriedade, compartilhava com o jovem nobre apenas a repulsa pela idéia de se unirem. A princesa de longos cabelos negros trançados correspondia a passional antipatia do garoto com um desprezo sarcástico e elegante que fazia suas vísceras se revirarem de ódio.

Mash'al, no fim das contas, sabia que nem era preciso toda aquela responsabilidade que de repente lhe caía sobre os ombros. Em toda a sua vida ele nunca fora capaz de contrariar uma única vez a vontade de seu pai.

Foi com bastante alívio então que ele havia finalmente encontrado uma esperança de ao menos por um tempo fugir daquele inferno de obrigações. Com a ajuda da Guilda dos Engenheiros de Mavi, ele havia conseguido uma recomendação para estudar no Instituto Marque de Sauge, em Aurin. Os Engenheiros estavam desenvolvendo uma importante pesquisa com relação aos campos eletromagnéticos relacionados a anomalias espaço-temporais nas Dunas do Horizonte sem Fim, como as passagens para Faerie e outras camadas do Aether. A Guilda acreditava que com essa pesquisa poderia desenvolver maneiras de viajar mais rápido pelo deserto ou mesmo pelo mundo, dominando as forças obscuras que geram essas fendas naturais no tecido do universo. Isso era tudo que Mash'al sabia e ele mesmo não entendia bem o sentido daquilo, mas o que importava mesmo é que os Engenheiros precisavam ter acesso a mais conhecimento nesse campo e o Instituto parecia ser a fonte mais segura e proveitosa. A oportunidade de ter alguém do prestígio de um agora herdeiro da nação se propondo a ir aquela terra distante em outro continente buscar esse conhecimento era boa demais para ser recusada, e graças a influência da Guilda em Mavi, o Califa Misbah terminara por assentir com a ida do filho, sem qualquer temor por sua segurança mesmo com a perda do primogênito, pois os herdeiros de Aswad temem mais a vergonha do que a morte.

Enquanto ainda organizava os acontecimentos em sua cabeça, um súbito baque fez com que Mash'al quase se revirasse na rede e fosse de encontro ao chão. Involuntariamente virando o rosto na direção do som, ele viu que alguém havia entrado no recinto por uma das janelas.
Era um felarque, Mash'al reconheceu após alguns segundos ainda tonto pelo susto. Um habitante das florestas depois do Planalto da Lua. Aquele felarque tinha sua pele cor de areia marcada por apenas algumas tatuagens, o que significava que era ainda jovem e pouco experiente. Seus cabelos rubros eram cortados na altura do ombro, e uma bandagem de tecido estava amarrada na parte superior de seu nariz. As penas vermelhas na parte posterior de seus braços eram longas, porém bagunçadas, e ele usava apenas uma calça marrom já bastante gasta, além de uma aljava nas costas. Seus pés de pássaro agarravam com firmeza o poleiro na janela, assim como sua mão agarrava com firmeza o arco que carregava. Entretanto, ele parecia mais curioso do que hostil.

Mash'al se lembrou então com um engasgo o que havia acontecido. Como a fronteira com Ashrani havia se tornado um lugar perigoso demais, ele com a ajuda dos trens subterrâneos dos Engenheiros havia cruzado o Planalto e pretendia pegar um barco na costa em direção as Ilhas de Jezirat. Enquanto viajavam pelos Ninhos de Fênix, um grupo de felarques subitamente os atacou disparando flechas das árvores. Pega de surpresa, já que o povo fênix nunca atacava moradores do Planalto sem motivo, a caravana que acompanhava Mash'al se dispersou e ele foi capturado por dois dos ágeis homens-pássaro, que com uma faca em seu pescoço o levaram para o topo das árvores e o desacordaram.

-Pegue suas coisas rápido. Você dormiu muito. Profeta quer falar com você - disse o arqueiro, saltando para o lado de fora. Mash'al não sabia por que diabos os felarques o haviam sequestrado e o que estava acontecendo, mas se havia algum jeito de ir embora, ele teria que primeiro falar com esse tal Profeta. Talvez ele já tivesse visto a pessoa por trás daquilo afinal, havia mais uma coisa na memória de Mash'al que ele primeiro pensava ter sido um sonho mas não desaparecia de sua mente. Ele havia sido visitado durante a noite por uma mulher, de aparência humana e não felarque, embora ela lhe lembrasse terrivelmente a senhora do palácio não só pelos longos cabelos vermelhos como também pela aura sobrenatural que a acompanhava. Quando ela surgiu perante ele, o quarto tomado pela penumbra pareceu ter sido iluminado pela luz de uma fogueira, embora a mulher não trouxesse qualquer chama consigo. Ela havia lhe falado alguma coisa, mas tudo que ele se lembrava era sua voz suave e sedutora, seu corpo esbelto de pele branca, coberto apenas por faixas de tecido enroladas, e seus penetrantes olhos dourados, que pareciam assim como os de sua ex-tutora Ifrit serem iluminados internamente por um mar flamejante, embora expressassem mais paixão do que fúria.

-Já estou indo - disse Mash'al, pegando seus pertences amontoados em um canto e se amaldiçoando por ter sempre que aceitar ordens nessas situações, embora ele admitisse que estava ansioso para rever a Profeta. Chegando a janela, o rapaz sentiu uma súbita vertigem e percebeu com espanto que estava em uma espécie de cabana no alto de uma imensa árvore. Pelos galhos estavam outros felarques, além de alguns pássaros de plumagem vermelha, que lembravam as sagradas fênix embora fossem menores e não tivessem o mesmo ardor em seu semblante. Todos o observavam com interesse. O arqueiro que havia lhe acordado estava mais próximo, como que aguardando que ele o seguisse, embora não houvesse nenhuma escada ou corda. Mash'al saltou a janela e então começou a longa e constrangedora jornada até lá embaixo. Os felarques desciam saltando de um galho para outro, fazendo algazarra em torno do príncipe, que não tinha outra opção a não ser descer devagar pelo tronco rugoso. Mais de uma vez ele escorregou e teve de ser segurado pelos homens-pássaro mais próximos, que apesar de parecerem estar se divertindo com aquilo não deixavam que ele se ferisse. Ao finalmente atingir o chão, Mash'al estava arranhado e sujo, mas inteiro. Espanando os pedaços de casca de árvore da roupa, ele percebeu que havia uma espécie de trilha no solo da floresta, marcada por archotes cuja fumaça tinha um cheiro doce e penetrante.

Alguns dos felarques seguiram a frente pelo longo caminho. Mash'al os seguiu, tendo ao seu lado o arqueiro. O rapaz descobriu que seu nome era R'yak, e que ele era como havia imaginado um guerreiro recém-aceito pelo seu povo. Perguntou também sobre a Profeta, e R'yak confirmou a descrição da bela mulher que o visitara durante a noite, embora tenha dado um sorriso enigmático ao perceber o interesse do garoto.

-É aqui. Trono de Profeta - Disse o felarque quando a estrada teve fim em uma clareira cercada por grandes fogueiras. Uma fumaça branca e espessa cobria o local. Pelo forte aroma Mash'al descobriu que se tratava de olíbano, a resina rara e preciosa usada como incenso pelos clérigos em Mavi, que só era encontrada nos Ninhos da Fênix e era vendida a um alto preço nos mercados da capital. Em meio a fumaça haviam ainda mais pessoas do povo fênix, algumas cuidando das fogueiras, outras chegando com galhos secos e ervas aromáticas para alimentá-las, e outros ainda prostados como guardas, carregando grandes lanças e posicionados em torno de um grande trono feito de troncos e galhos entrelaçados, que parecia ter brotado naturalmente do solo naquela forma. O trono estava envolto pela fumaça branca, e apenas ao se aproximar Mash'al pode ver a Profeta, tomando um grande susto.

Quem estava sentado ao trono não era a graciosa mulher de cabelos vermelhos, mas um homem forte de pele morena como as da Tribo de Aswad. Seu cabelo era trançado e ele tinha um aspecto firme e respeitável. De uma maneira perturbadora, Mash'al percebeu que ele tinha a mesma chama em seu olhar que a Profeta, e suas vestes eram as mesmas, embora adaptadas ao seu corpo masculino.
-Onde está... - Mash'al começou a dizer um pouco vacilante
-Eu sou o Profeta - disse o homem com uma voz alta e grave - Sou um dos espíritos soberanos entre as fênix. Nascemos de nossas próprias cinzas, não precisamos nos separar entre o masculino e feminino. Fui eu quem te visitou na noite passada, mas em meu outro aspecto.

Mash'al precisou de um tempo consideravelmente longo para assimilar o que acabava de ser dito. Olhando confuso em volta, ele viu que os felarques estavam sérios, com exceção de R'yak, que lhe deu um sorriso divertido sabendo de sua ignorância com relação a aquilo. Ainda atordoado com a surpresa e de certa forma frustrado, Mash'al tentou se recompor e voltou a atenção ao Profeta, que o encarava inexpressivo.
-Porque me trouxe aqui? - perguntou finalmente
-Porquê sei que o fardo das terras de Al-Dasht caiu sobre um novo herdeiro, mas que ele está de passagem por meus domínios a caminho de tentar continuar com seus próprios planos.
-Hum. Então você é mais um pra me chamar de covarde e dizer que estou fugindo das minhas responsabilidades, estou certo?
-Jovem Mash'al - O espírito da fênix abriu um largo sorriso - Ainda vejo uma fagulha do sangue de Aswad em você. É minha função como ancestral dessa terra censurar e aconselhar, mas você está antecipando as palavras de alguém que está há muito mais tempo nesse mundo. Eu precisava te colocar frente a mim para saber se você é capaz.
-Capaz de governar a nação? - Mash'al disse com desânimo.
-Não. Capaz de governar a própria vida e de trilhar o próprio caminho sabendo do fardo imposto a você. Capaz de lidar com o que o destino lhe trouxe e mesmo assim continuar sendo quem você escolheu ser.

Mash'al levantou o olhar lentamente, encarando pasmo o Profeta
-A estrada mais difícil de trilhar é aquela que escolhemos, Mash'al. -ele continuou- Mas é somente nela que podemos buscar de maneira plena aquilo que desejamos. Porém, enquanto não souber o que você realmente deseja, não será você quem estará escolhendo o caminho, por mais que acredite nisso. Você será apenas um passageiro na carruagem do destino.
-E como poderei saber o que realmente desejo? - Mash'al disse com uma certa ansiedade. Ele não sabia o que esperar daquilo, e as palavras saíram de sua boca quase involuntariamente.
-Buscando aquilo que nos torna quem realmente somos... liberdade. - O rapaz notou que um brilho surgiu no olhar dos felarques mais próximos. - Você não pode fugir do que o destino lhe traz, mas deve ser livre na hora de escolher o que irá fazer. Para trilhar sua própria estrada, você deve ser forte e ter a convicção necessária para não se deixar prender entre as duas armadilhas... o dever de fazer e a culpa por não ter feito.
-Mas se eu não me sentir no dever de fazer nem me arrepender por não ter feito, o que irei fazer? - respondeu o garoto.
-Voar - disse o Profeta, e sua forma começou a mudar, inicialmente se desfazendo em um mosaico de chamas dispersas, se misturando a fumaça das fogueiras, para então surgir acima dela como uma gigantesca e brilhante fênix, a mais bela que Mash'al viu em toda a sua vida. -Voar livre sem se prender ao que não é seu. Só assim você descobrirá o que é importante e verdadeiro em sua estrada.

A voz da fênix agora tinha tanto a melodia suave da mulher que o visitara durante a noite como a firmeza do homem que estava sentado no trono. Mash'al fez uma grande reverência, encantado por aquela visão, enquanto os felarques davam gritos de excitação e alegria.

-Agora vá, jovem herdeiro de Aswad - O pássaro de fogo continuou, pairando com suas gigantescas asas ardentes - Somente um governante que entenda o significado e valor de sua posição é capaz de liderar essa terra. Vá e seja livre para descobrir aquilo que ainda não conhece do caminho que escolheu, e retorne caso descubra que sua vontade é digna de guiar esse lugar como guia sua própria vida.

E dizendo isso, o Profeta das fênix alçou vôo e atravessou os céus do entardecer como um sinal luminoso.

14 comentários:

  1. Nossa!

    Essa foi um conto grande, mas muito interessante =]
    A cada conto que passa vou entendendo mais sobre a historia do mundo xD

    O que se poderia fazer bem depois é um resumidão das historias interessantes de cada cidade ou nação...

    AbraçO!

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  2. Uou, excelente, Bardo! Parabéns!

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  3. Esse clã da Fenix deve ser incrível! Os personagens são muito interessantes, adorei mesmo!

    Arrasou Bardo, abre um portal pra esse povo conhecer o mundo da gente! =P
    P.S.
    Eu quero um Falarque par mim!!!! *_*

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  4. Tá massa!Você escreve absurdamente bem, Bardo! Fazia muito tempo que eu não lia coisa viajada assim, envolvendo mundos paralelos e tal... Eu tava com saudade! Tá muito bom!!!Brigadão por ter me feito ler esse blog!!!

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  5. Ficou xou. Voa, fenix, voa!!!

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  6. Foi um conto extremamente interessante, Bardo.

    Mash'al é uma personagem interessante, você mostrou suas impressões de maneira muito honesta, gostei muito.

    Também gostei das múltiplas descrições do/da Profeta, realmente impôs sua presença e passa a sensação de Mash'al ao vê-lo/vê-la em todas as formas.

    A descrição do aposento também ficou ótima.

    Parabéns!

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  7. Heey! Ficou muito bom, gostei dos personagens , da narrativa , do seu vocábulo e das ideias que o texto tenta passar , como : desapego , esperança..Continue assim!:D

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  8. Parabens Bardo você escreve muito bem!

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  9. Meus parábens sai-Bardo! Texto excelente!

    Longos dias e belas noites!

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  10. Grande Bardo *-*

    Nem preciso dizer que tu owna nos contos né ? u-u
    Eu amei este, tuas descrições estão realmente excelentes, *-* Parabéns :D
    ^^

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  11. Nossa, Bardo, adorei *-*
    Adorei os Felarques, eles são um povo fascinante *-*
    Adorei a narrativa, o lugar, tudo, realmente, muito bom *-*
    Parabéns, bardo-chan

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  12. Bardo você escreve muito bem. Parabéns! Gostei muito do negócio da fênix e os homens-aves são realmente fascinantes, a idéia foi bem original. E a maneira como você registrou o ódio mútuo entre príncipe e princesa me soou simplesmente maravilhoso. Parabéns!

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  13. muito legal o conto
    diferente dos contos de fantasia tradicionais
    parabéns ^^

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