domingo, 14 de novembro de 2010

Relato do Falcão do Deserto


Meu nome é Ihmed, e junto a meus companheiros atravesso as areias escaldantes do Deserto das Dunas Negras, enquanto ouço o farfalhar de um milhão de demônios as minhas costas, guiados por pequenas asas. Fazem apenas dois dias que deixei a cidade condenada, onde agora há apenas fantasmas e destroços de ambições e esperanças. Não olho para trás, e mesmo se olhasse veria apenas uma imensa nuvem de poeira, que segue nosso rastro como um presságio sombrio e recobre o horizonte. Logo chegarei aos portões da cidadela de ferro, onde o julgamento daqueles que se dizem donos dessa terra irá continuar.

Levo a morte comigo em minha lâmina e em meus sonhos despertos, e ela para mim é uma irmã. Assim tem sido desde que aceitei o caminho que me foi designado, sendo treinado na fortaleza dos hashashin em Jezirat, minha terra natal, da qual me restam apenas vagas recordações. Apenas me lembro do mar enfurecido batendo nas rochas de uma alta muralha, e do movimento silencioso das víboras em meio a escuridão. Naquelas terras aprendi a ser um instrumento da morte. Apenas na terra desolada de Al-Gober, onde fui um escravo, aprendi a ser um instrumento da liberdade.

Nela eu cheguei como um emissário do Califado de Al-Dasht, e meu destino era o Sultanato de Gehenna, uma colônia afortunada, nascida de um entreposto de caravanas que cruzavam Al-Gober. Meu dever era o de ser como uma leal ave de rapina, oferecendo minha vigília e minhas garras para minha nação. A grande preocupação do grande califa e de meus irmãos hashashin era de que a Tribo de Iblis estendesse suas mãos impuras sobre aquela caixa de jóias, deixada vulnerável nas areias distantes.

Mas durante meu longo vôo como um falcão de Al-Dasht até Gehenna, nenhum sinal avistei dos corvos imundos de Iblis, e logo descobri a razão. Uma revoada de abutres já dominava aquele lugar, tendo espantado os corvos ao mesmo tempo que rodeava o Sultanato com olhos cobiçosos. Assaltantes de caravanas, contrabandistas e matadores grosseiros, que durante décadas controlaram os nômades da região pelo medo e pela espada, agora se espalhavam pelas ruas da cidade como moscas em um cadáver, transformando Gehenna em um lugar onde a vida e a morte tinham seu valor pesado em ouro.

Aquela era a cidade condenada que agora deixo para trás, abandonada não apenas por mim, mas também pelas areias do tempo. Enquanto bandidos da pior espécie mantinham o controle do mercado e das ruas, o sultão nada fazia. Titulado apenas por sua riqueza e por sua breve influência naquela região, ele passou seus últimos dias trancado em seu palácio, com seu harém e sua guarda pessoal, que nada mais eram do que aqueles que haviam covardemente vendido sua lealdade em troca da proteção das muralhas.

Percebendo que minhas penas manchadas de sangue atrairiam a atenção dos abutres, tentei ser visto como apenas um andarilho em Gehenna, me misturando a pastores e mendigos. Meu disfarce não durou muito, e pouco depois de descobrir que os portões do palácio estavam trancados para mim, fui reconhecido como forasteiro e então capturado bem diante dos olhos do sultão, que os manteve vendados e nada fez por um enviado de sua terra. Correntes me foram postas, e fui levado como escravo para as sombrias tendas do mercado.

Ao me revistarem e encontrarem minhas espadas, (que esperavam minha irmã sussurrar para que fizessem seu trabalho), os olhares desconfiados dos abutres faiscaram em minha direção, mas os convenci de que se fosse minha intenção cravar minhas garras em seus corpos imundos, o teria feito no momento da minha captura. Graças a boa fortuna, os bárbaros do deserto não reconheceram minha marca de assassino, o que denunciaria minha missão e faria com que ela escorresse pela areia junto a meu sangue.

Demonstrei aos mercadores da cidade minhas habilidades com a cimitarra, tentando atrair a atenção do sultão para a proteção que poderia lhe oferecer, o que me garantiria entrada no palácio. Ao invés disso, fui comprado por um homem nanico de saúde frágil, que usava uma máscara com óculos de couro e um filtro de metal para respirar na poeira. Ele pretendia me usar como gladiador, para fazer fortuna na grande arena que havia naquele lugar e que movimentava grande parte do dinheiro.

O pequeno homem, que vivia não só das apostas mas também de seus serviços como ferreiro, possuía um outro escravo, um sujeito silencioso que andava com o corpo inteiro coberto por um manto púrpura e carregava uma arma estranha, a qual eu nunca havia visto antes. Era uma espécie de bastão de madeira, com as pontas terminadas em argolas de metal afiadas. Ele se movia de maneira nervosa, e as vezes parecia haver um leve zumbido vindo de seu corpo. Não demorou para que eu descobrisse o porquê.

Aquele gladiador, de nome Dahaka, pertencia a um povo inseto que durante séculos viveu sob as areias do Deserto das Dunas Negras, sem contato com os humanos. Ele havia aprendido minha língua com o ferreiro, embora falasse em um dos sotaques mais estranhos que já ouvi. Vendo que muitas vezes ele se mostrava confuso com os costumes da superfície, eu o ajudei a compreender melhor coisas comuns que o intrigavam ou atrapalhavam. Após algum tempo nos tornamos também bons companheiros de batalha, e longas eram as nossas conversas entre uma luta e outra na arena.

Enquanto eu o ajudava a entender o mundo dos humanos, ele também me contava sobre sua espécie e sobre o lugar onde vivia. Ele dizia que o tamanho de Gehenna mal podia ser comparado ao da cidade onde nasceu. Porém suas noções de medida e arquitetura eram muito diferentes das minhas, e ele descrevia sua cidadela como uma rede de túneis, estendidos de forma parecida com um formigueiro por todas as direções no subterrâneo. Não duvido que ela possa ser maior do que qualquer cidade humana.

O mesmo digo sobre quantos de sua raça lá vivem, pois a maneira como ele parecia contar os indivíduos era ainda mais incompreensível quando perguntei. Por vezes, quando observo as dunas no horizonte, penso em um enxame infinito de homens-inseto, zumbindo em uma cidade-colméia espalhada por todo o deserto. Talvez movidos por algum tipo de consciência coletiva, algo que Dahaka parece ter tentado me explicar, embora não conseguisse encontrar palavras em meu idioma para isso.

Minha jornada como gladiador durou por alguns anos tortuosos. Como um espectro formado pela poeira sufocante do lugar, a cobiça daquele povo miserável colhia as almas dos perdedores com uma mão enquanto com a outra entregava o ouro aos apostadores. Eu não pretendia continuar por muito tempo naquela vida, pois tinha um destino a cumprir, e o mesmo pensava Dahaka. Naquele tempo, eu sequer imaginava que o fardo que guiara meu estranho porém leal companheiro até a superfície era mais terrível do que qualquer um naquela cidade condenada poderia conceber.

Então veio o dia em que um homem das terras do leste chegou na cidade condenada. Ele havia sido um assassino, mas agora vagava pelo mundo, pois havia se decepcionado com a humanidade. Em Al-Gober ele via com tristeza o sofrimento e a crueldade daqueles que se diziam abandonados por qualquer esperança. Ele como eu havia sido um instrumento da morte, mas jamais se tornou um instrumento de liberdade, pois não acreditava que pessoas de alma tão endurecida merecessem outra liberdade que não a da morte.

Um dia quando retornei para as tendas ao anoitecer o vi conversando com Dahaka. Ele parecia muito interessado em algo que meu camarada falava sobre o povo-inseto jamais ter abandonado seus deuses e tradições. No dia seguinte, meu companheiro de batalha foi comprado pelo homem do leste para servi-lo como guarda-costas. Dessa forma nossas estradas se separaram, e senti que a hora havia chegado de deixar a arena e terminar meu dever.

Após desafiar e vencer o mais forte guerreiro do sultão, pedi como recompensa no lugar de ouro que minha proposta de servi-lo na guarda do palácio fosse aceita. Felizmente desta vez, mais por medo que respeito, o governante aceitou meu pedido. A todo custo evitei me envolver com as serpentes venenosas do palácio, pois não desejava me tornar como elas, mas continuar falcão e ter um lugar mais alto de onde vigiar até que chegasse o momento oportuno de salvar aquela cidade, algo em que falhei miseravelmente.

Eu já havia, depois de muito provar ao sultão que era alguém eficiente e de confiança (além do fato de pertencer a mesma terra) conseguido a posição mais alta na guarda do palácio. Tal prestígio permitiu que eu trouxesse para dentro das muralhas alguns de meus companheiros hashashin, que comigo mantinham contato sempre que possível para saber o quão próximo estava de meu objetivo. Também já havia descoberto o possível sobre os grupos de bandoleiros que dividiam o poder na cidade, e esperava apenas que minha irmã sussurrasse para mim que era chegada a hora, deixando seu hálito marcado em minha lâmina fria.

Mas então a poeira na estrada começou a se revirar outra vez.

Com uma tempestade se iniciando no mundo lá fora, Gehenna não conseguiu permanecer alheia aos ventos da mudança. Mesmo encravada no meio da aridez abandonada, sua riqueza passou atraiu a atenção da grande águia prateada, que enviou um falcão negro para se aninhar próximo a ela. Os abutres tentaram expulsá-lo como fizeram aos corvos de Iblis, mas o falcão negro trazia sob suas asas as lanças de fogo de sua terra, que feriram os abutres com suas pontas de chumbo. Os líderes dos abutres então declararam guerra ao falcão, e isso foi apenas o começo.

Pouco tempo depois chegou a criança de Tawosret, trazendo consigo as bênçãos que o povo de Al-Gober havia esquecido. A pequena sacerdotisa trouxe alento para os nômades feridos e infelizes, e logo os boatos sobre seus milagres se espalharam pela cidade. Por pouco a guarda do sultão conseguiu capturá-la antes que os bandidos, felizmente distraídos por sua guerra com o falcão negro, fizessem o mesmo. Mas o mesquinho sultão, como seria de se esperar, desejava as graças da menina apenas para si, ainda que ela durante sua estadia tenha trazido ao palácio mais harmonia do que ele teve em toda a sua breve existência.

Então Dahaka retornou, e com ele veio o castigo que varreu Gehenna para as ruínas do passado.

Ele estava atrás da menina, a quem deveria matar segundo as ordens de seu mestre. Eu não podia deixá-lo tirar uma vida tão preciosa, e longos foram meus embates noturnos com meu antigo irmão de armas. Mesmo compreendendo o papel de um assassino, eu sentia que havia algo errado em sua missão, e a marca da meia-noite que ele trazia consigo aumentou minhas preocupações. Mas por fim chegou a hora dele se livrar de seu fardo, e a noite que ele trouxe para si permitiu que seu povo mais uma vez andasse sob a luz do dia.

Dahaka foi o arauto de Al-Lazif, a legião de cem milhões de demônios levados por pequenas asas e por uma fome itnerminável. Ele foi o algoz da cidade condenada, que como uma carcaça largada na aridez, sem vida e sem esperança, foi consumida por uma nuvem de insetos capaz de recobrir o sol. Todos os nascidos em Gehenna, inocentes ou não, foram consumidos pelo do deserto, que em sua fúria revelou os segredos mais abomináveis de suas entranhas.

Esse era o destino que meu irmão de armas havia escolhido, e eu deixei que o cumprisse.

Aquilo que aconteceu, deixo agora para trás, oculto pela nuvem de poeira que os demônios levantam enquanto se espalham pela superfície, agitados depois de incontáveis eras aprisionados sob a areia. Dahaka não cumpriu sua missão como um instrumento da morte, pois a sacerdotisa continua a respirar nas terras do leste. Ela foi salva pelo falcão de ferro que veio buscá-la, trazendo seus irmãos de guerra para livrá-la das ameaças e andarilhos das estrelas para guiá-la no caminho de volta.

Mas na última conversa com meu companheiro de batalha, ele me disse que após libertar Al-Lazif, seu povo teria uma chance de não mais ter de servir a seus deuses obscuros, que por temerem a luz do dia não teriam a mesma influência que possuíam nas profundezas escuras da terra. Ele havia entendido enfim o que era ser um escravo, e parecia gostar da idéia de sua gente descobrir aquele mundo da superfície por si mesma, como ele havia feito. Mas para ele era tarde demais, e ele morreu no lugar em que sua estrada começou.

Enquanto que eu continuo a atravessar o deserto, ouvindo o farfalhar de um milhão de demônios as minhas costas, guiados por pequenas asas. E meu único conforto é pensar que aquela estranha criatura, a quem posso chamar de amigo, possa ter se sacrificado como um instrumento de liberdade.

9 comentários:

  1. CA-RA-LHO!
    Que foda! O_O
    Não sabia que o Ihmed tinha passado por tanta coisa, pensava que ele era só um velho... bem... medroso...
    Ah, o Falcão de Ferro apareceu *-* *Suspira*
    Obs: Cu, tentei postar esse comentário ontem, nem percebi que não foi e to postando hoje

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  2. LINDA a história do Ihmed, ficou muito boa! \o/ E personagens legais apareceram nela! xD Embora eu tenha ficado esperando que aparecessem mais, mas whatever! Não tinha me tocado que ele o Dahaka eram amigos assim, ficou muito bonito isso... Apesar de o Dahaka ser um Porre com P maiúsculo, foi meio deprimente o fim dele... -.-' Que chineses não me ouçam. E fico me perguntando se foi mesmo bom a sarcedotisa continuar a respirar as vezes... só as vezes... =P Metáforas ficaram muito legais, embora tenham me enganado umas vezes. Não sabia que o Ihmed era tão cheio de metáforas... xD Queria fazer minha crônica da queda de Gehenna, mas a Ufal não deixaaa >.<' Um dia ela virá, eu juro! Até lá eu leio as suas =P

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  3. Você tem talento para a escrita, e até agora as postagens demonstram que você tem bastante imaginação. Gostaria que você opinasse no meu cenário também: http://valares.blogspot.com

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  4. Agora posso dizer que sou fã de carteirinha do Dahaka!
    Só ele mesmo para morrer como um herói! Agora só resta ao Ihmed negociar a pacificação entre a tribo dos homens inseto e os humanos, para delimitar territórios. Se isso não for possível acredito que eles passarão a ser escravos dos humanos.

    Ihmed é um cara de boas histórias... mas não desconfiava dessa ligação dele com o ferreiro anão. Se bem que ele tinha dito que era amigo de longa data desse cara.

    Enfim, Ihmed para mim tem a melhor história... agora fico no aguardo de: Harkuf - O homem equipamento :P
    Aahuahauhaauhauhauahau

    AbraçO!

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  5. Boas ideias, muita imaginação. Parabéns, Bardo, suas histórias são ótimas e encantam qualquer um!

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  6. Bardo!
    Como sempre suas histórias são fantásticas, você cria um universo incrivél *-*

    E sua escrita está fabulosa também, adorei *-*

    E eu enrolei mais comentei xD

    ;]

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  7. BARDO-CHAN,
    omg, esta ficou simplesmente fantástica. Eu já te falei e acho que devo te lembrar sempre: você é um escritor incrível.
    O conto ficou muito bom mesmo, parabéns. *-*

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  8. eu me pergunto como cabe tanta criatividade num cérebro XD parabéns, Bardo... vc tem um talento inegável pra escrever fantasia. Gostei da narrativa leve e das figuras que vc usou. Me fez sentir que conhecia o narrador. Apesar de não conhecer muito as criaturas o.o mas bah, eu entendi, é o que importa ;)

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  9. mto bom, mto bem feito, como sempre^^ concordo com a Lud, mta criatividade pra uma pessoa só... xD rs...

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